VENTURA PICASSO
Verão na República, na correria anônima dos paulistanos,
a invisibilidade humana transforma o cotidiano, na praça ninguém vê ninguém, os
envolvidos nessa odisseia, concentrados em seus pensamentos, em vertiginosa
correria seguem em busca de seus objetivos planejados.
O acúmulo de transeuntes, força uma marcha uniforme como
se fosse militar. A casa de discos, a todo o volume, propagandeia o sucesso do
momento: “Oh! Carol, I am but a
fool “- Neil Sedaka – retumbante, na Parada de Sucessos, ao lado
da H. Stern.
Caminhando, a uns dez passos à frente de Ivan, na mesma
cadência.
― Que par de canelas!
O Czarina preto, marcava o toc-toc na calçada com seu
salto 8, elegantíssimo, impondo o ritmo da massa.
Ela, naquele espaço, a única imagem concreta, entre
milhares de seres invisíveis.
― Cheirosa...
Mas algo imprevisto acontece. A potranca mudou o passo,
do trote para o galope. As pernas, roliças, perderam o sincronismo.
− O
que é isso?
No balanço dos quadris, descendo lentamente, aparece
abaixo dos joelhos, sua anágua. Mais alguns passos e seu andar, a esta altura
retorcendo os tornozelos, impossibilitado pela peça (quase) íntima, de um leve
salto, sem sequer olhar à traz, livrou-se da tal abandonando-a.
Ivan, pacientemente, aguardava o desfecho do incidente,
antevendo o desastre final, ou seja a queda total, a explosão da anágua ao desabar.
Gentilmente, recolhe a preciosa peça de seda gelo e vai
ao encalço da mulher.
Ela caminha embaraçada, cabisbaixa, derrotada pelo constrangedor
evento, ao sentir a aproximação do homem, em vão, tenta apressar o passo, é
alcançada.
― Aqui está sua roupa.
Sem querer olhar, olha o rosto de Ivan, com voz trêmula
agradece. Ajeita os óculos escuros, enrola a saia rapidamente guarda-a na Prada
preta de mão casada com o Czarina.
***
Os pacotes que carrega, a esta altura, prejudica a
caminhada. Só falta chover.
O barulho ambiente, Neil Sedaka, buzinas pela Barão de
Itapetininga, chegam à Xavier de Toledo, na calçada do Mappin, de cara com o
bonde 14.
O gigante condenado passa acelerado, bombando o sino estrepitosamente,
à procura da Consolação.
A garoa paulistana os recebe na entrada do Viaduto do
Chá.
Ele, inseguro, aproxima-se:
― “Quer ajuda”?
― Não. Obrigado.
A caminhada é longa, ao passar pelo prédio da Light,
venta forte revirando saias e guarda-chuvas, a garoa mais intensa e gelada,
impossível evita-la, apesar de verão, causa arrepios.
Ela não confia no atrevido acompanhante.
− Parece
ser educado e gentil. Enquanto não conseguem o que querem, todos são muito
gentis.
Ele está muito curioso, gosta do estilo francês como ela
se veste, discretamente predomina a cor preta, o casaquinho Chanel com meia
manga, a saia chá demonstrando um bom gosto refinado.
Para evitar a chuva, algumas pessoas correm entre a
multidão. Os esbarrões são inevitáveis.
Trocando de lado, os pacotes são pesados, exigindo uma
força que ela não possui, caem e se espalham pelo chão.
Atenciosamente, Ivan os recolhe e seguem calados em
direção à Patriarca.
O ônibus para o bairro Pinheiros já estava em movimento;
parou. Ambos embarcam, cada um ao seu destino.
Sem palavras, ocupa o penúltimo banco, apanha os pacotes
que o estranho recolhera. Ele por sua vez avança, ultrapassa a catraca, e fica
bem a frente, virado para trás observando o rosto da mulher.
Ao ser observada insistentemente, vez que outra os
olhares se cruzavam, acaba cedendo e aceitando o ‘jogo sério’.
O lindo rosto agora altivo e sem timidez abandona o pudor
e não está mais cabisbaixo.
Ele lambe os lábios; ela sobe a sobrancelha.
Mais alguns minutos, esboçando um discreto aceno, Ivan chega
ao destino e desce do ônibus.
Não há diálogo, o ônibus sumiu no transito intenso levando-a
em seu interior, ele não imagina que poderia ter sido a última vez a ver aquela
imagem.
Mas ficou com a certeza de que a conhecia de algum lugar.
−
Esse rosto...
A música de Cazuza interfere outra vez, distraído entra
na loja de departamentos para comprar ‘Oh Carol’ embaralhando os pensamentos
sobre o problema; ‘O tempo não para’!
***
Sem entender como foi parar no Largo 13, de taxi rumou
para a zona leste. Lá chegando, em seu apartamento, os porteiros eufóricos o
recebem, ajudam com a bagagem e acrescentam uma caixa de correspondências
acumuladas por mais de trinta dias.
Tanto tempo fechado, o apartamento, cheira a mofo. Não há
o que comer. O estoque de vinho esta baixo, mas encontra e abre um Clos de
Torribas; desceu como agua.
Liga à pizzaria Bella, encomenda uma de calabresa, tudo
bem; não vê a hora de cair na cama.
Liga a TV para ‘ouvir’ um som – truque dos solitários.
Finalmente chega a pizza e a cerveja. Num piscar d´olhos,
foi meia calabresa e toda a cerveja.
Saiu do chuveiro e desmaiou na cama. Mal sabia que algo inimaginável
iria acontecer.
Morfeu, um dos deuses dos sonhos e da morfina, o aguarda
no leito, com cachimbo de bambu fumegando ópio; A fumaça transportada pelo
vento como uma oração abre as portas do céu e aguça seus poderes. Atento à
espera do pedido, como Zeus, para apresentar-se sob qualquer forma humana,
Morfeu pergunta:
−
Qual a forma preferida, senhor?
− De
mulher!
Em poucos minutos, ainda molhado, apesar do verão 30°,
Ivan acorda e vai à procura do banheiro. O corredor, ao qual deveria estar a
porta do reservado, era outro. Chegou ao quarto de hóspedes, e nada de WC.
Retornando, se dá conta de que não conhece aquele lugar. Novamente em seu
quarto, sonambulando, retorna ao corredor. Um clarão assustador, uma atmosfera
soturna, um silêncio tumular, esfumando uma nuvem que se dissipa branqueando e
em seu meio, surge afinando o foco de uma imagem latente, a mulher nua que reconhece,
e aparece com balões azuis.
− É
ela!
Os batimentos acelerados, a boca seca, agora acordado,
exausto segue naturalmente ao banheiro e volta à cama.
Foi sonho, realidade ou imaginação – foi macumba?
Como pode acontecer, uma alteração subliminal de porte,
estando em sua casa, vivenciar com tanta naturalidade, a hospedagem do Nacional
Palace, em Corumbá?
O cansaço, talvez ilustre esse lapso, mistura em seu
pensamento, o quarto do hotel com o apartamento que reside.
Nessa confusão de ‘sonho’ fantasia e desejo, ele descobre
a origem da mulher. Passível, sem perceber que agora ela lacra, domina e ocupa
um espaço em seu coração, abre o caminho da sedução, e se instala.
A publicidade na TV mostra uma cozinha, um fogão e uma
mulher demonstrando um produto de limpeza – Um sabão!
− O
rosto mais lindo que já vi!
***
Morar na periferia é uma preferência inegociável, um
privilégio, o fim da rua o fascina. O clube da várzea, o salão de baile, os
amigos e vizinhos, o barzinho aos domingos aberto até ao meio dia,
supostamente, pertencem a mesma classe social.
A chuva aumenta, noite alta e o churrasco termina. Toma
por empréstimo uma capa plástica e parte para casa.
Subindo a rua 40 muito escura, avista em sentido
contrário um vulto, aparentemente enorme, uma mulher.
A lenta aproximação, as dificuldades para caminhar com
pouca luz, ao passar um pelo outro, ergue a cabeça ela passa.
O
perfume! “La Petite Robe Noire” (“Pretinho Básico”).
Numa fração de segundo recorda o passado, desde a queda
da anágua na República ao ônibus na Patriarca.
A vida semelhante ao mar, balança no horizonte no vai e
vem. A onda, leva e traz...
− Oi!
Ela estava distante alguns passos, parou, ergueu os
olhos:
− Oi!
A música, como em todas as noites, invade o espaço romântico
dos caçadores apaixonados. Serviços de Alto-falantes Flor da Vila. Algumas
propagandas do comércio local e para acalmar o espírito, Jamelão:” Ela disse-me assim ...” –
todas as noites no mesmo horário, até às 22h.
O silêncio entre o casal é normal. Não houve diálogo,
nunca houve. Eles estão paralisados, olhos nos olhos, estáticos.
−
Como é linda!
−
Ele é baixinho!
Só agora nota que ela é bem alta. Muito próximos um do
outro, o perfume é aquele da casa Guerlain, o mesmo dos outros dias. A respiração
ofegante, está presente em ambos.
Com as mãos acaricia o rosto, ela cobre as mãos dele, e ficam
colados, hipnotizados.
Para ela o mundo parou, o ‘barulho do silêncio’ traz ao
longe um novo som. Uma música celestial, sonante ao longe, suavemente, ela
enquanto bailarina reconhece o ‘Repertório’, do cubano Ernesto Lecuona,
“decantando paixões”, Siempre em mi corazon.
A emoção não permite distinguir se sonho ou realidade.
Lecuona, infelizmente, jamais tocará na Flor.
−
Onde estou?
Vaga-lumes e
estrelas brindam o início da festa. Festa do amor, Ivan e sua companheira são
os únicos habitantes do planeta.
A pureza do sentimento de ambos, uma poesia de Neruda. Em
nenhum momento a saudades frequentou os sentimentos deles. Não houve espera,
ansiedade, dúvida, cobranças ou impaciência. Não tinham compromisso. O tempo,
simplesmente, passou sem calendário.
Por fim, o abraço.
Ivan, sentindo-se seguro, admirado e pensativo, sente o
gosto da vitória. Pensei que não seria possível:
Essa negra, é a mais linda diarista de TV.
Ficamos, para toda a vida...
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2 comentários:
Lugares muito conhecidos... Percorridos diariamente... Da República para Pinheiros... Ônibus... Patriarca... Mappin... Saudades de minha Sampa década de 60 a 80... Momentos únicos. Aprendizagem de vida pessoal e profissional. Obrigada, pela leitura e recordações.
Abraço.
Saudades, de um mundo que acabou e renasceu na década do 80. Tenho a impressão que era outro país. Talvez a idade não me permite entender os mais jovens, modernos e tuitizados. Grande abraço Célia.
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