23.12.06


“Natal sem Fome”

Em nossas vidas, a esperteza, o uso do ‘código de ética’ para autodefesa, as manobras amalandradas para obter resultados sempre embaçados, é uma constante no dia a dia, ‘é normal’. O pãozinho de 50g está mais leve, assim ficamos com a impressão de que levamos mais pães pagando por quilo. Somos felizes, soltamos um balão de ensaio de 91%, mas ficaremos contentes com 45%.

A campanha “Natal sem fome” criada por Herbert de Souza, o Betinho, após 13 anos chega ao fim. Hoje a ONG Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, fiscaliza o programa “Bolsa-Família” que está prestes a atender 11 milhões de residências. A Rede Globo, e seus artistas que ajudam voluntariamente o “Natal sem Fome”, e estão anunciando o “Natal com Brinquedos”, sem esclarecer ao público porque não entregam mais as cestas de alimentos.

Há pouco tempo, durante a campanha eleitoral, no primeiro turno fiquei chocado com as declarações de um candidato a deputado, que para arrebanhar uma votação pífia, além de bater no candidato presidente, qualificou o programa Bolsa Família de Bolsa Esmola. A resposta veio nas urnas, e a votação obtida pelo tal candidato não daria para eleger o suplente de síndico do meu condomínio. Vai passar o Natal devendo a campanha.

Natal, para os cristãos mais sensíveis é um momento de reflexão. Eu efetivamente, não sei se é uma data alegre ou triste, só sei que é muito comercial. O ‘espírito natalino’ condicionado ao consumo globalizado, que padroniza o sistema de venda dos produtos que a população deve comprar, e compra. Milhões de almas diferentes usando os mesmos produtos, das mesmas marcas, o mesmo pernil e o panettone etc. Lembrar da data, por solidariedade ou pela festa do Natal, talvez a maioria ignore.

Não quero ser traído pelas minhas lembranças, mas lá pelos idos de junho de 2003, Maurício Corrêa na Presidência do STF, ao assumir o cargo e, na presença do Presidente Lula, desfechou um discurso de sindicalista sangado, detonando a Reforma da Previdência, principalmente, aos itens que alcançavam diretamente os magistrados. Foi uma manifestação corporativa ou apego aos vencimentos dele? Nunca saberemos.

Sou obrigado a concordar, sou brasileiro não tenho memória. Mas, não esqueço o mês de março de 2005 quando o outro Presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim juntou-se ao ‘saudoso’ Presidente da Câmara, Severino Cavalcante para conceder um reajuste salarial a todos os parlamentares e juízes. Homem de palavra queria cumprir promessa de campanha após conseguir os 300 votos, coincidência ou não, os mesmos votos que cassaram o Deputado José Dirceu. Porém, no momento da assinatura, o Presidente do Senado Federal, Renan Calheiros tinha na mão uma caneta sem tinta e não funcionou, o nobre político melou o conchavo e os outros dois pegos com o dedo no gatilho deram tiros de festim.

Sem dúvida, foi uma oportunidade única e perdida. O Severino se autoproclamava um defensor dos parlamentares, principalmente os do baixo clero seus fieis eleitores. O ex-Ministro Jobim, ‘impoluto’, longe de mim querer a ele induzir a pecha de oportunista, mas diante a fama do ‘companheiro’ da Câmara, que nunca temeu escândalos, e pouco se preocupava com a tal falta de vergonha, entendo que o Ministro estava de olho no aditivo salarial, solidário, dele e da categoria.

Essas alucinações econômicas, pesadelo pregado na memória que não tenho, e abobalhado fico imaginando qual a diferença entre um Severino populista e um Rebelo comunista. A principio, os dois queriam a Presidência da Câmara, mas de perto, percebemos que a isca é a mesma. O negocio é dinheiro nas mãos, votos no caixão e o resto é chuvarada.

Neste Natal, todos estarão felizes. O ex-ministro de 2003 também, e se patriota fosse, poderia ter iniciado a Reforma de Previdência. Como não é possível abrir mão de dinheiro algum, chegamos aos dias de hoje, metidos na mesma camisa e com o mesmo time. A esperteza está presente no pãozinho, na Câmara e na TV. E eu pergunto: Será que passou pela cabeça da banca do STF uma possibilidade invertida de lidar com o dinheiro público? Poderiam diminuir os salários dos juizes, para igualá-los ao dos deputados. Não! Não estou lembrado de alguma proposta como essa. Sou bobo, mas sou feliz...!

Ventura Picasso –3555-21-12-06

20.12.06


Contos mínimos – 4

Maria Cândida com sua troupe quando entrava no hotel, procurava o gerente e recomendava: “quero três apartamentos iguais, os melhores; Dona Benedita, minha secretária, deve ser atendida sempre que solicitar algo; Para o motorista Marreco, liberdade total no bar, boate e restaurante, e ele não pode, em hipótese alguma, ficar sem uma agradável companhia”.

Boa noite a todos, despedia-se Cândida e recomendava: ”Benedita, por favor, providencie e avise-me quando o jantar estiver servido”.
A cozinheira de tão discreta, parecia assombração, surgia do nada e desaparecia do mesmo jeito.
Marreco permanecia no hall paginando os álbuns das ‘acompanhantes’, o porteiro de plantão, ajudava dando detalhes de cada menina: ”Este álbum só tem gatinhas em início de carreira, e neste outro, as mais experientes da cidade, coisa fina”. Marreco, cansado da viagem folheava, lia relia cada currículo, o porteiro incentivava, mas nada.

Jogando os catálogos sobre a mesa de centro falou: “não quero jantar, vou ao bar beber um uísque”
Subiu ao apartamento, e como sempre, após um bom banho através do interfone fez o pedido: “Por favor, informe à cozinheira Benedita, que traga o jantar no meu quarto, e como de costume, um champanhe nacional, obrigado”.
Concentrado na imagem da mulher que ninguém via, e que surgia do nada, pensava: “Não tem mulheres e comidas mais gostosas do que a Benedita”.

1204 - Ventura Picasso - fev2006

19.12.06

Contos mínimos - 2


Não era dia de trabalho, mas intimado, saiu procurando os presentes das cunhadas. Na Praça Quinze, pescoçando os preços, entre a multidão e sem querer, é levado para o Largo da Carioca, lá onde todos pedem tudo: malabaristas, cínicos que pedem ajuda pelo amor de Deus. Outros não pedem, levam. Bilheteiros na gritaria: ”Vaca, galo, porco...”. Capiongo, envergado, encosta a cabeça na vitrine, baba encarando os preços.
A mulher poderia ser mais disposta, ter ido atrás, comprado os trecos das irmãs, enfim, dado um tiro no pepino. Mas, ele? Ele não, o cara não entende dessas coisas. Desistindo pega a reta. Viu um boteco, entrou de mansinho, olha a estufa tufada de bolinhos, a sujeira embaça os azulejos, mesmo assim lambe os beiços e de boca molhada, entre moscas embirradas grita: “Hei, uma lata redonda, trincada”.

A menina pernuda do Bar do Porco, micro saia, atrás do balcão envidraçado, virada pra ele ajoelha, faz uma graça joga a lata e vai sorrindo pegar o troco. O cara pega na direita, sem limpar a boca da lata, com um arranque do dedão gordalhudo, a tampa é arrombada. Tomba na boca chupando com os miolos torrando: “O que fóde é trabalhar no feriado, pagar as Casas Bahia e comprar badulaques pras cunhadas, obedecendo as ordens da mulher”.

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Intertextualidade
Adaptação: Ventura Picasso
Conto “As três cunhadas” de João Antonio

Contos mínimos – 3

Começava escurecer e Bernardo dirigia o Doddge Charger; ao seu lado viajava Jacó. Na praça central, deparou-se com uma matilha de cães impedindo o transito. Para quem estava morrendo de sede, cansado e louco para encontrar uma choperia, um transtorno. O pivô da concentração era uma cadelinha no cio. O chefe saltou do carro e aos gritos, exige a dispersão canina, mas a natureza fala mais alto. Nenhum cãozinho deu a mínima ao bronco moralista.

Na calçada, uma balzaquiana loira tipo Ana Braga, divertia-se com o incidente. Jacózinho de olho na mulher refletia: “sou raquítico, baixinho e ajudante de ordens de um galã disputado por todas as alas femininas que conheço, não tenho chance”. Fez um aceno à loura que retribuiu. Bernardo percebendo, ordenou que o ajudante marcasse um ponto com ela. Foi, acertou local e hora, e seguiram ao chope.

De noitinha, chegando ao endereço da Lola, Bernardo mandou Jacó subir examinar o local e avisar a mulher que iria visitá-la. O guri subiu no hall de entrada bateu, a porta se abriu e o serviçal é puxado com força para dentro da sala. Antes que ele se manifestasse, a bela mulher lhe falou:
— Eu tenho uma caminha de campanha no dormitório da empregada, se você não se importar, a gente fica muito à vontade e seguro por um bom tempo. Jacózinho, mudo, abanou a cabeça positivamente, e entrou.

Retornando ao encontro do amo já cansado de esperar e ansioso, meio sem jeito, abrindo a porta do carro:
— oi chefe, tudo bem?
— E aí, posso subir?
— Não... Foi sem querer, mas já comi...

1290 Ventura Picasso
Contos mínimos – 1

Em poucos minutos fiquei só e a estação ficou deserta. Ouço as badaladas na torre da igreja, dezoito horas; Ave Maria. Como procissão o trem que a leva, desaparece no horizonte, já não ouço o atrito entre os ferros, a fumaça no infinito onde os trilhos se juntam, evapora selando uma separação irremediável, sem volta. Dos sonhos que sonhamos, resta apenas, o rastro do amor e de uma paixão bloqueada.
Uma sombra mórbida surge na minha mente, talvez, essa seja a única expectativa do meu futuro. O tempo poderá apagar alguns momentos, mas não o brilho daqueles olhos, olhando os meus. Revirando as pastas de velhos projetos perdidos na memória, só vejo um possível desfecho, única solução: o divórcio natural com ausência de vida. Não conheço outro itinerário, e sem essa morte não terei vida.

Fica apenas a certeza absoluta, de que quando aquela vida cessar, voltarei à estação. O trem que se foi levando-a do meu mundo poderá trazê-la de volta, agora livre, essa mulher, que é o único motivo da minha felicidade e do meu viver. Estarei à espera, em ladainhas, refazendo os nossos sonhos de amor e de paixão, antes que a fome insaciável de possuí-la, me devore... Ave Maria.

1017 - 30-01-2006 Ventura Picasso

15.12.06

CENOTÁFIO

Houve uma explosão muito próxima a mim, o som não era de uma bomba ou de tiro de revolver. Um som diferente, não foi fora, mas dentro de mim. Estranho, não consigo identificar esse barulho, algo me diz que a explosão foi dentro da minha cabeça. Senti uma energia diferente, um calor rápido e um alívio proporcionado por um silêncio melodioso e uma doce leveza.

Afinal o que está acontecendo? Desembarquei no terminal rodoviário, vindo da periferia mais distante, no fundão do Parque Água Branca. Todo o sábado vou e aos domingos volto numa rotina agradável, como sempre. Tenho orgulho por dominar e ser amado por essa mulher. Amor verdadeiro ou falso? Suburbana, agrícola, mas inigualável.

Na intimidade das carnes, tudo o que ela conhece, e o que ela sabe de mim, provoca e enche o meu ego, me sinto o super-homem. Todos os dias que nos encontramos ela renova as juras de amores, sempre comprovando com atos concretos coisas que o meu intelecto nunca imagina. Não a esqueço um só momento, trago na alma o sonho doce dessa paixão aonde vou, dia e noite.

Relembrando ainda que ao subir a Rua Joaquim Nabuco extravasando confiança, andando firme e bem cadenciado, meus ombros bailavam num luxuoso salão cheio de convidados, mentalmente planejava o que poderia fazer com ela no chão do jardim, amá-la e entendê-la intensamente e dialogando na mesma língua revolucionando o nosso amor todos os sábados até o fim da vida. Ao ajustar os óculos, em minhas mãos senti o cheiro fresco de raiz exalado pelo corpo de Jupira. Fechei os olhos, viajei roçando o rosto no seu colo, lambendo o pescoço levemente arrepiado...

Explodiu!

Por um instante, o tempo de abrir e fechar os olhos eu vi um corpo caído no chão, muita gente em volta, alguém cobria o infeliz e eu, flutuando e assistindo, como numa tela de cinema mudo, num silêncio sepulcral, aquele fato. De um lado, uma caminhonete importada, de outro um defunto, atropelado. Chegaram ao local todas as polícias disponíveis; Após três horas uma ambulância recolhe o cadáver, o carro do IML não veio, está quebrado.

À distância, ao retirarem os jornais que cobriam a vítima, não a reconheci, mas era-me familiar. Aproximei-me daquele cenário mórbido, e observei a pasta com o caderno de anotações, lapiseira, a camiseta preta da sorte, a calça jeans e o sapato. O relógio arrebentado a identidade no chão, sem dúvida, são meus.

Nesta altura, tenho consciência de que sou um fantasma, agora invisível e com certeza, mais um bisbilhoteiro morto sem aviso prévio. Por instinto, não posso concordar, logo agora que a sorte me sorria. Levantei com pé esquerdo, e ainda encontrei um gato torto doidão correndo sem rumo. Sou de Escorpião e Saturno que foi rebaixado e caçado por astrofísicos intolerantes, acentuando a minha astrofobia. Com esse astral não poderia dar outra coisa. O corpo que os policiais estão resgatando é o meu, aqui neste canto sou eu, e aquilo caído no chão foi meu corpo, como amor e sexo, não misturemos. Na ambulância, embarquei na minha invisibilidade, cheio de vantagens, e fui!

Fomos todos para o IML é exigência legal a autopsia. Logo eu que nunca gostei de médico, agora nem reclamar posso. Saberei se o atendimento aqui é igual ao do pediatra da UBS, lá o ‘médico’ atende quinze crianças em quinze minutos, sem dúvida é um vagabundo. E eu aqui, peladinho com uma etiqueta preza ao dedão do pé direito onde está escrito que o individuo José Damasceno, que não é parente de ninguém, nº. 027/06 fora atropelado na Rui Barbosa às 15h.

O legista balbuciando inconformado: ”atropelado na Rui Barbosa... que retardado... deve ser um capiau que nunca veio à cidade”.
No laudo, a causa mortis anotada: “Traumatismo craniano radical”. O documento necroscópico chega às mãos do encarregado para fazer o atestado de óbito:

ATESTADO

? O Senhor José Damasceno, nº. 027/06, foi vítima de atropelamento por um veiculo de grande porte, cabine dupla importado, modelo anti-Lula que lhe causou entre tantas fraturas, um traumatismo exposto no frontal e acima do nariz, ou seja: deu de cara no rótulo da Toyota 4X4. O médico, Doutor José Antônio, ainda possesso por ter expulsado aos gritos um desavisado que reclamara a falta do camburão: “Quem mandou você votar nesse prefeito, seu animal?”. Assinando o documento, ruminava um pensamento: “Esse cara é muito burro, (atropelado na Rui Barbosa?), não agüento tanta ignorância, agora eu vou mesmo, vou mudar pra Bagdad”...

Lendo o laudo por sobre os ombros do doutor, entendi o meu barulho: foi a minha cabeça que explodiu. Agora o meu corpo aqui exposto, pelado e ridiculamente ignorado. Só faltava essa menina flertando, de olho no meu cadáver. Será que ela não tem o que fazer? Atrevida, é a reencarnação dos embalsamadores dos Faraós. Aqueles escravos faziam cada uma com a burguesada morta. A cara dela diz tudo, está mal intencionada, olha onde ela está passando a mão e encostando o rosto. Enquanto vivo essa vaca nunca me deu bola, agora quer sentir o meu cheirinho?

Ufa! Que calor... Ainda bem, apareceram os funcionários para levar o meu corpo. Cuidado meu, o chassi está todo arrebentado e vocês ficam pegando de qualquer jeito? Que é isso, devagar com isso aí, precisa jogar assim nessa caixa suja? Isso se parece mais com capacete de moto-taxista, qualquer um mete a cabeça. Tudo bem: Lá vamos nós. Essa maca está manca, e correndo feito um louco o caixão pode cair! Louco! Cuidado porra! Cuidado!

Falei, esses caras vão acabar com o que sobrou do meu corpo. Eu estava vendo que ia cair, mas esses incompetentes... Quero ver agora como é que eles vão por o corpo nesse caixote, e depois, joga-lo sobre essa maca ordinária. Olha lá, vai cair do outro lado, devia cair sobre o Baianinho Jaburu, é um relapso, esse filho da puta!

Esquisito,

Isso aqui parece instituto de beleza, com mesa de mármore, até que é bem limpo. E a minha roupa? Até quando vou ficar pelado? Aqui só tem mulher, conheço a Norinha é maquiadora. A Zabocão vem com balde, água, sabão e toalha; Agora é banho na certa, até que enfim. Maquiagem não, o que vão pensar lá no Sumaré?

O caixão é muito chique, know-how de última geração, cheio de adicionais, direção, ar, vidros e travas douradas. Quatro funcionários, sendo um bêbado, para encaixotar o gostosão na urna fúnebre. Flores, rendas e gravata; Mas... a cara? Essa cara não é minha! A testa remendada, cheia de base, pó de arroz, vai ser a maior decepção no velório, estou com cara de bicha! Quem é o dono dessa espelunca que não vê isso?

Rumamos ao velório com nota fiscal. Nem defunto pode ser transportado sem nota. O GG fica em cima, quer carimbar as cinco vias do produto, conferir o ICMS para liberar a transportadora. O motorista da Besta, temulento, alcoólicos ela e ele, pois os conheço muito bem. O coitado esteve internado em Tupã onde tomou na cabeça choques que lhe causaram grandes prejuízos, dizem que sarou, mas... Acelerou a Van e saímos finalmente, em direção ao velório. Com certeza, alguém pode estar à espera, quem sabe uma multidão, centenas de coroas, dezenas de jovenzinhas e eu com essa cara.

O camburão segue o caminho planejado desenvolvendo uma velocidade de quem perdeu a hora. Não sei para que tanta pressa se o meu corpo já morreu. Descendo a Baguaçu, Silvestre economiza, desengata e vamos de morro abaixo como enxurrada, ninguém segura. Surge em sentido contrário um caminhão tanque carregado de diesel com nafta, uma bomba com doze pneus carecas. O GG, da nota fiscal, vinha voando para interceptá-lo. Certo de dar um flagrante de combustível adulterado e prestes a alcançá-lo, a viatura do Picolé voava baixo.

Os veículos desembestados, a Besta e o tanque, cada qual de um lado da ponte, quando como mágica, aparece não se sabe de onde, uma cachorrinha vira-latas atravessando de uma calçada à outra. Havia previsão de chuva, uma tormenta com ventos fortes, e já ventava. O bom caminhoneiro para não atropelar o lindo animalzinho, desviou o caminhão para o centro da rua. Silvestre vacilante e sem reflexos, não teve escolha e foi colhido por aquele bólido desgovernado que acertou em cheio a viatura defuntosa. Os carros se enroscaram, os motoristas pularam; E vivos concordaram: Foi o vento! O GG chegando, ofegante, quer a nota: ? Que nota, meu? Respondeu-lhe Silvestre sentindo na testa um galo que cocoricava.

Explodiu,

Mas, não como minha cabeça, o caixão magicamente, Copperfield não faria melhor, como num circo foi serrado ao meio virou lenha fogueirosa e o meu defunto ficou mais estragado, torrado como pelego de porco, metido num aperto e esmagado que só sardinha. O teto do carro juntou-se ao assoalho. O fogo tomou conta, e com o sopro do vento as labaredas subiram, e bastaram alguns minutos para que tudo se transformasse em cinzas levadas e espalhadas por uma ventania furiosa soprando em direção ao Baguaçu. Essa morte me surpreendeu que brincadeira, foi uma peça. Sonhava morrer (luchando) num cabaret da Velha Havana (Patrimônio da Humanidade), numa noite louca cantando e bailando com minha índia Jupira, o hino soy loco por ti América: ”Mais apaixonado ainda dentro dos braços da camponesa, guerrilheira/Manequim, ai de mim, nos braços de quem me queira...”. Eu queria se possível, ser cremado após a morte e que alguém jogasse os meus restos mortais na Marina Hemingway, mas não foi possível, o vento se ocupou de encaminhá-las às águas do rio, enfim é o caminho do mar. Sou contra poluição, ao enterrar os mortos no cemitério contaminamos no subsolo o lençol freático, quanto a túmulos, é obrigar os que aqui ficam cuidar da tal ‘última morada’.

Mas, defunto mora?

Os bombeiros, após muito trabalho, puseram fim ao incêndio. O fogo acabou, apagou e agora não tem defunto nem velório. Um enterro sem defunto. Um túmulo sem morto, um cenotáfio? No cemitério, o povo olhoso, e entre estes, os ‘avisados’, o Pai-de-Santo, um Pastor e o Padre com seu breviário de página marcada pronto para me despachar: “Está na hora, portanto, do homem levantar a cabeça e se conscientizar, a morte clínica faz parte do processo integral da vida”. Ele queria dizer que basta estar vivo para passar para uma outra dimensão que é o ponto final.

O motorista acompanhado do chefe da agência funerária reuniu os piadistas e os chorões de plantão na capela do cemitério para explicar: “Não há defunto, o morto queimou, e as cinzas o vento entregou no Rio Baguaçu, mas nem tudo está perdido, sobra uma vaga no túmulo da família para uma outra eventualidade, e a nossa empresa não vai cobrar nada pelo serviço”. E eu estou feliz, primeiro por não ocupar a tal vaga que me foi oferecida naquele mausoléu de luxo e segundo, por não ter seis oportunistas em volta do meu caixão mortoso abalados pelo meu passamento, e por fim, as explosões que me tiraram do mundo, não foram dolorosas. Agora eu não sei aonde vou morar. Aguardem-me, em breve voltarei!

OUT/2006 – Ventura Picasso – 9017





BASE: Texto criado à partir da Oficina Sesc:
“Texto e Imagem: uma experiência criativa” (H. Consolaro & Paulo Brasil)

Reforçado pela ótica de Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas

Vocabulário (neologismos) João Guimarães Rosa – Sagarana, Grande Sertão: Veredas, e de Mia Couto – Moçambicano – Estórias Abensonhadas

14.12.06

A Porta do Inferno

Bagdá, hoje é motivo de grande perturbação emocional. Muitos combatentes que estão prontos para a guerra têm um pressentimento de que as coisas poderão se complicar. O discurso do Bush, simplista, é o mesmo de Hitler. Ele tem dinheiro até para pagar adesões dos que vendem mão de obra assassina, a qualquer país, quem quiser. Tecnologia criada e dirigida por uma raça humana superior. É a maior máquina de guerra jamais vista no mundo. Destruir o Iraque inteiro para colocar um governo submisso ao americano é a coisa mais fácil no momento. O pobre Saddam Hussein, que nunca obedeceu à família Bush, agora tem que entrar na linha; já ofereceram algumas vantagens para que ele renuncie e seja exilado em outro país, tudo por conta do dono do mundo.

Hussein por sua vez, está preparando a população para que sirvam de escudos humanos assim, procura inibir o fogo do Bush, mas ele esquece que o Bush é amigo do Ariel Sharon que gosta de jogar bombas entre refugiados, e depois comemorar. De que adianta o tal escudo humano se o que o Bush quer é um Iraque deserto, sem povo. Pobre só dá despesa. O que foi feito no Afeganistão é o que ele imagina fazer no Iraque. Irak el-Arabi, país dos Árabes, que para enfrentar o exército anglo-americano tem como primeiro aliado a natureza. O frio, a chuva, o calor e o vento. Não foram os generais russos que derrotaram os alemães, foi a neve, a mesma neve que arrasou Napoleão, considerado imbatível. Bagdá é a porta do inferno !

A história se repete com outras palavras. Estaremos vendo o inicio da decadência do império norte americano ? Um governo que descobre o “eixo do mal”, só poder ser governado por “agentes do mal”. Pessoas estreitamente ligadas à indústria bélica, a produção e comercialização de petróleo, e esse é o ponto crucial dessa guerra, a apropriação do petróleo iraquiano. Bush já tem o governo montado para quando invadir e destruir o Iraque, com certeza, tem mapeado os campos petrolíferos que caberá a cada saqueador, e a parte maior caberá aos americanos.

E se o plano de guerra americano não funcionar como o esperado, se for uma guerra alongada por incidentes imprevisíveis, se houver perda dos vasos de guerra estacionados no Golfo Pérsico, se outros países árabes se juntarem ao Iraque, quem segura a falência econômica dos Estados Unidos ? Esperamos que a reunião que o Bush marcará para o primeiro semestre deste ano aqui no Brasil, não seja especificamente, para pedir soldados brasileiros, e envia-los ao combate contra o povo iraquiano. A nossa guerra é contra a fome.
Ventura Picasso