3.3.07

CORISCO !


Assobiando “Oh Carol”, descia a Porangaba quando alguém gritou o meu nome. Era a Japa que estava no veterinário com a Bia, uma cachorrinha fru-fru, branca como leite, poodle. Cheia de lacinhos coloridos: um palmo de altura, cara de doente, os olhos diziam tudo. Amanheceu jururu, não comeu e com seus gemidos quase inaudíveis, alertava suas dores agudas. Pensaram em carrapatos, mas ao examiná-la, encontraram furúnculos. — É leishmaniose? O médico escolhido a dedo, é dos bons, mas não conheceu Corisco, que não conheceu Bia: — Calma gente, não é nada sério. Em pleno réveillon, o plantão lotado, cachorrada classe média já sabe que após a tempestade vem àquela ressaca, nem injeção de Engove resolve.

Essa cena levou-me aos idos de 1959. Edmundo comprara um disco de 78 rpm, “Oh Carol!”. Corisco um cachorro vira-lata de porte médio, mal encarado, não latia e música para ele, era barulho. Seu olhar parabólico dizia que ali não tinha para ninguém. Certo dia, o encontrei no porão, duro e espumando como sabão de soda. Trivelato era o único que lidava com animais, fazia ferraduras. Enrolei-o num pano e fui ao ferrador. Examinou-o, pegou a garrafa com tisana; encontrou sobre a bigorna uma seringa hipodérmica que parecia uma bomba de encher peneu, carregou até a boca e disparou no quarto traseiro do animal; deu câimbra na orelha direita que estremeceu, enrijeceu e murchou; efeitos colaterais (?): ficou míope e perdeu o faro.

— Muito bão, amanhã o bicho tá bão... Assim falou Trivelato.

Com vinte anos de idade, 1,98m, 110 kg, entre ombros Edmundo tinha mais de metro. Saindo da Rua São Bento, em direção ao Viaduto do Chá dei de cara com ele. Para cumprimentá-lo, fechei a mão e dei-lhe um direto no peito. Ouvi um barulho de cacos quebrados. Abrindo a camisa puxou os restos de um disco de vinil, com um selo verde onde pude ler: “Oh Carol!”. Ele fez uma cara tão feia que aceitei o acordo de pronto:
— PAGO1

Na Casa Bevilaqua comprei dois discos do Neil Sedaka, um para cada um. Edmundo se foi, e eu fui à Sé pegar o busão. Em 31 de dezembro, a Rua Direita em festa, chuva de papéis picados, não se enxergava nada, ainda mais, depois de tanto uísque o controle motor ratiava. Chegando em casa, madrugada alta, apesar de ter bebido algumas observei o jardim florido, a cerca treliça, e em declive o piso vermelhão, era um espelho alisado com cera Recorde.

Entrei, e ao descer a rampa fui emboscado. Não sei de onde saiu Corisco, mas engoliu minha panturrilha. Desequilibrado fui caindo de costas, e num movimento involuntário, o 78 foi fortemente arremessado à parede da área, lá chegando virou pó. Gritei com o cachorro e ele soltou minha perna, me reconhecendo, com as patas no meu peito, abanou o rabo lambeu minha boca, e pensei: ”ainda bem que esse bastardo não é surdo e nem louco”. “Oh Carol!” (?)... Nem pensar!


2398 - 25-01-2006 - Ventura Picasso

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