5.4.09


DORA!
Ventura Picasso


Sempre soube que é um grande poeta. Faz o que quer das palavras, e o faz sempre, com graça. Não aquela graça mística, mas a que nos faz rir. No livro Experimentânea 6, Editora Somos, encontrei Laerte em Minguante: “Logo ontem que eu estava faminto, um poeta guloso deixou lá no céu um pedacinho da lua. Revoltado, fiz bolinho de chuva e afoguei sua poesia”.

“É Impressão Minha ou Estão Batendo na Porta?” Obra prima de Laerte Silva Junior da Cia. Teatral Um e Outro. Há mais de oito anos escreveu essa peça, mas aguardava a hora para lançá-la. Reunindo os artistas ensaiaram durante nove meses. O tabu ainda existe. Não é fácil escrever, dirigir e apresentar num palco, cobrando ingresso, o tema da pedofilia. Crianças são estupradas por médicos, violentadas nos palácios, ou na periferia entre vítimas da miséria.

No palco, percebemos a coragem para ser mais uma Dora. Todos nós somos Dora. Entramos no teatro pela porta dos fundos invadindo um espaço privado, particular e nos misturamos, para conviver com o silêncio do drama imposto pela violência sexual, e como eles, somos apenas Dora.

As chibatadas é a violência que deixam cicatrizes e marcas profundas todas as vezes que são abusadas. Uma goteira persiste como um martelo criando uma insuportável angustia. É a consciência confusa, é o corpo imundo que não se limpa. È a casa sem portas. A campainha toca, mas não há campainha, pessoas que não distinguem o certo do errado ou a dor do prazer. O telefone chama, mas já não há telefone! Vítimas eternas de uma perversão sádica repassável.

Todas as expressões artísticas trazem um forte conteúdo político e neste caso, Laerte ultrapassa a política e invade o universo filosófico. Busca a verdade. Não denuncia, mas aflito, quer debater a tese com quem puder naquela hora. Dora, lotando a platéia e ocupando o palco, drogada por chocolates, excremento, que destrói a moral, já não entende a realidade.

Sigmund Freud (1856-1934) não se conteve. Lança em 1896, a ‘Teoria da Sedução’ denunciando os efeitos nocivos das imposições sexuais contra crianças (Artigo: Complexo de Édipo e pedofilia de Jacob Bettoni – Folha de SP 14-11-2000). Ele quase foi à falência. Isolado por dois anos perdeu a clientela, mas resistiu. Entre as famílias à sua volta havia a prática comum da pedofilia. Seu pai, Jacob abusava de sua irmã e seu irmão. Sua paciente Emma foi violentada aos 12 anos.

Quando o entregador de pizza chega, a justiça acaba. Num raro lapso de lucidez vejo que “um poeta guloso deixou lá no céu um pedacinho da Lua. Revoltado, fiz bolinho de chuva e afoguei sua poesia.”
Levou Araçatuba ao Festival de Teatro de Pirassununga em 2009.
Vale à pena ver Laerte no teatro.


2222

0 comentários: