8 de maio de 2019 - https://www.cartacapital.com.br/sociedade/ainda-me-alegro-com-elogio-de-um-aluno-mas-a-esperanca-acabou/?utm_campaign=newsletter_rd_-_08052019&utm_medium=email&utm_source=RD+Station
Perseguido e precarizado, o professor Dennis Almeida é um triste retrato
das crises que arrasam o País.
Quem visse os dados de Dennis Almeida rabiscados em
uma ficha do IBGE não teria dúvida: eis aí um dos que impede que a popularidade do presidente Jair
Bolsonaro role de vez a ribanceira. É branco, heterossexual, tem
olhos claros. Também pertence à classe média frustrada e endividada.
Mas a vida é mais complexa que o censo. Dennis é,
na verdade, um inimigo do governo. Quatro vezes inimigo. É professor. Que
ensina história e literatura. Para crianças e adolescentes. Também faz mestrado
em uma universidade pública. Um comunista-doutrinador-baderneiro, diriam os
novos donos do poder.
A história do professor se converteu em um triste
retrato do colapso moral, político e institucional que tomou o País. A
vida nas escola particulares nunca foi fácil, é verdade. Mas avinagrou
mesmo de vez de três anos pra cá. “Desde 2016 eu me sinto um fracasso
profissional”, diz.
Esses dissabores não são frutos apenas da crise
econômica mundial. Embutido nesse colapso econômico, avalia ele, cresceu também
um discurso feroz: se você não tem emprego, não trabalha, não prospera, o
problema é você.
O ponto máximo dessa crise aconteceu há duas
semanas, quando tentou virar professor na filial de uma famosa rede paulista de
colégios. Dennis fez dinâmicas de grupo com outros candidatos. Passou por
um exame psicotécnico de quase três horas, ouviu elogios. Na hora de acertar o
salário, veio o baque. O recrutador propôs fraudar a CLT em troca de um
contrato por hora/aula. Viraria um uber-professor, ganhando o equivalente
a 1.600 reais por mês.
Inclui-se aí o tempo preparando aulas e corrigindo
provas. Em dezembro, janeiro e julho (quando os alunos são liberados para as
férias escolares) não receberia um centavo. Décimo-terceiro? Nem pensar. Para
arrematar a oferta, o coordenador lançou um slogan adaptado de uma outra rede
de ensino: aula dada era aula paga.
(Foto: Wanezza Soares)
Dennis disse não. Ouviu do interlocutor que não
tinha visão. Entrou no carro e chorou. “Não foi só a proposta, foi o
acinte de tratar aquilo como oportunidade: ‘Olha que sorte você tem, você não
vai ser um funcionário, não vai ser um sócio’”.
O Micro Empreendedor Individual (MEI) foi criada em
2008 para acomodar categorias que estavam relegadas à informalidade. Deu
guarida jurídica e fez girar a economia durante a recessão — das 955,3 mil
empresas abertas entre janeiro e maio deste ano, 79,2% eram MEIs. Em alguns
casos, porém, se converteu em brecha para despistar o fisco e aliviar os custos
com contratação.
É preciso manter o caixa girando, alunos
motivados e pais satisfeitos. Tudo isso em um mercado cujo número de matrículas
está estagnado desde 2016.
No caso dos professores, essa insegurança fragiliza
ainda mais o professor em relação aos alunos, pais e diretores. O trato fora da
lei livra essas escolas de, por exemplo, respeitar as regras especiais do
magistério — que impedem, por exemplo, que um professor seja demitido no meio
de um semestre.
A pressão de pais descontentes, antes feita cara a
cara, perdeu o lugar para uma tática mais agressiva. Os pais agora formam uma
espécie de milícia digital no WhatsApp. Se não gostam do que este ou aquele
professor disse, o grupo todo pede a cabeça em troca de manter os filhos
estudando. “O Escola Sem Partido deu método, sentido de grupo e vocabulário a esses
pais”, diz Dennis.
Nem no banco, nem na sociedade
Aos 37 anos, Dennis é professor há quase vinte
anos, sempre na rede privada. Sua esposa, também. A carreira era estável até
2016, quando ele perdeu o emprego em duas escolas de São Paulo. Mudou-se com a
mulher para Minas Gerais. Dessa vez, a demitida foi ela. O mesmo aconteceu de
novo com ele pouco depois. Se fosse para sobreviver, pensou, melhor voltar para
o lugar onde eles gostavam de estar.
Estão de volta em São Paulo, onde dividem uma casa
de fundos com os pais dela na Vila Morse, bairro operário da Zona Oeste da
capital. Os móveis e pertences continuaram em Minas, e ficarão por lá até que o
casal consiga os 8 mil reais necessários para a mudança.
Fora dos muros da escola, o profissional da
educação perdeu também o respeito da sociedade. “Faz tempo que eu não sei
o que é estar feliz no trabalho. Ainda existe a alegria de ouvir o elogio de um
aluno, de um dia de trabalho bem feito. Mas perspectiva com o futuro? Isso
não”.
Ele e outros cento e cinquenta professores trocam
oportunidades em escolas particulares por meio de um grupo no WhatsApp. “Todos
estamos correndo atrás de escolas, porque as particulares encolheram.” Até a
esposa se converteu em concorrente: se um é chamado para um processo seletivo,
diz ele, o outro desiste.
“Eu amo a carreira que eu segui, mas ela não me dá
respaldo nenhum. Nem no banco e nem na sociedade”.
Há dois anos, em meio às primeiras discussões sobre
a Previdência, o casal angustiava por não saber se iria se aposentar. Agora,
ele sente que algo recrudesceu. O que o preocupa mesmo é saber se sua profissão
continua existindo sob a cruzada bolsonarista contra o pensamento crítico e a
educação. Por isso decidiu brigar.
Topou falar com CartaCapital, mesmo sob o
risco de ficar queimado no mercado. “Nosso desespero é saber: daqui a
cinco anos, vai existir a profissão? E se esse maluco decide acabar com a área,
e um congresso conservador aprova?”.
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