18.3.09


SOLIDÃO
Ventura Picasso
FOLHA DA REGIÃO 02/04/2009

Em dezembro de 2008, quando a cidade completava 100 anos, deparei-me com um ser humano supostamente excluído. Dentro dos nossos padrões aceitáveis, conforme interpretamos os significados, a estranha figura desestruturada, do tal individuo, provocou em mim intensa curiosidade, não só pela sua aparência, mas principalmente por suas reações.

Segundo informação do jornal, ele não fala. A tentativa de uma abordagem civilizada, solidária, sempre é rejeitada. O que levaria um homem a esse ponto? Uma coisa é certa: Foi ele que abandonou o lugar onde vivia. Percebe-se facilmente que é uma atitude isolada e radical. A disciplina de seus atos, a partir da negação, ao ser alvo de interesses de outrem para ajudá-lo; beber água que corre nas sarjetas, fazendo com as mãos uma concha, como fazem ainda hoje, algumas tribos africanas. Alimentar-se de comida descartada, encontrada no lixo. Tudo nos leva a crer que é uma vítima, um ser invisível em seu próprio habitat.

A dificuldade ou o desinteresse da família, talvez da comunidade de entendê-lo, criou em seu mundo psíquico uma fantasia libertadora. Se fosse surdo-mudo, poderia conviver com os seus. No entanto preferiu o isolamento incompatível com a sanidade. Apoiado numa única vantagem pessoal, seus direitos democráticos, vagueia de improviso por onde bem entende. É um sem nada. Sem numero, ninguém pode encontrar um fio que o remeta ao passado. Seus trajes me levam a imaginar um interno abandonado num canto de um sanatório. Mas, não me parece que seja um deficiente mental.

Ele flutua em nosso meio livre como um pássaro. Corajoso, consciente ou inconsciente, deixa uma marca definida do que quer. Não teme os riscos, os preconceitos e a ausência de conforto. É mais livre do que qualquer um de nós. Conhece essa realidade. Está perfeitamente enquadrado nos padrões da burguesia. Não pede esmolas, não quer ser um chato. Anda pelas ruas, pelas calçadas e usa chinelos. Qualquer entidade decadente andaria descalço. Há certa sensibilidade em seus pés. Posso arriscar: ele nunca andou descalço. Será por acaso, mais um José nascido na Macondo de Garcia Marques, em ‘Cem Anos de Solidão’?

É um solitário? Ou esquizofrênico que não se ocupa do porvir? Qual é a sua verdade? Quem sabe? Ou ninguém sabe! Nas relações com os homens, com o mundo dos deuses e com a natureza, fora do sistema político não protesta, mas conduz o seu destino, mostrando no alicerce do seu caráter aventureiro, a aura de um vencedor. Os sentimentos que regem as emoções, a segurança, os prazeres do sexo, e até os alimentos etc. para nós necessários; para ele, que o vemos excluído, tudo é supérfluo, a sua verdade é a vida!

Foto:Alexandre de souza 17022009 Folha da Região

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